Profetas e montanistas

Dois grandes movimentos se destacam entre aqueles que se desviaram do curso do cristianismo no segundo século: O gnosticismo e o montanismo. Os gnósticos se concentraram exageradamente na parte intelectual do cristianismo, enquanto os montanistas exageradamente na parte inspiracional da fé. Não trataremos aqui do movimento dos gnósticos, que será visto à parte, e nos deteremos na significância do montanismo. Diferentemente dos gnósticos, a maioria dos montanistas não se apartou dos ensinamentos dos apóstolos de Cristo. Para entendermos o movimento profético é preciso rever o papel que os profetas tinham na igreja primitiva.

No tempo dos apóstolos os profetas eram tidos como figuras importantes na vida da igreja.

(Nota do tradutor: Faço aqui neste parágrafo um retrospecto a atuação dos profetas no livro dos Atos dos Apóstolos mencionado pelo autor à p 92 de seu livro):

Nos primeiros anos da igreja os profetas são mencionados com frequência na comunidade dos cristãos. Eram acreditados e reconhecidos quando se levantavam nas reuniões, e, inspirados e tomados pelo Espírito Santo proferiam palavras cheias de poder. Depois tais manifestações foram diminuindo, em parte porque muitas igrejas começaram a suspeitar de que nem todos que se diziam profetas eram genuínos e também, em parte, porque o crescimento organizacional da igreja não deixava espaço para que os profetas se manifestassem. Na realidade, um terceiro fator surgiu: A diminuição do número dos profetas.

Encontramos um bom número deles nos primeiros anos da igreja, e, de fato, tais manifestações sobrenaturais não encontram paralelos no cenário dos grandes movimentos religiosos. [1]

Um desses profetas, Ágabo que vivia em Jerusalém, de repente declarou numa reunião da igreja em Antioquia que uma grande fome viria sobre a terra. De fato, sabemos pelo historiador romano Suetônio que o reinado do imperador Cláudio (41-54) foi marcado por sucessivas estiagens e perda de colheitas, e quanto a situação na Palestina, Josefo relata que a região sofreu com a fome cerca de 46 d.C. e que a rainha mãe, uma judia do reino de Adiabene, região que ficava junto ao rio Tigre trouxe grãos do Egito e figos de Chipre para aliviar a fome dos judeus na Palestina. Foi neste tempo que os irmãos da igreja de Antioquia levantaram recursos para seus irmãos da Judeia em resposta às profecias de Ágabo, que Paulo e Barnabé levaram para a igreja de Jerusalém.

Esses profetas aparecem no livro de Atos ao lado dos mestres, e as palavras deles eram bem aceitas. Nas cartas de Paulo os profetas são incluídos nos ministérios divinamente concedidos a igreja e são tidos como importantes, destacados logo depois dos apóstolos (1 Co 12.28). Jesus, ao ascender aos céus deu esses ministérios ao seu povo: “ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres” (Ef 4.11).

No Didaque, logo no começo do segundo século os profetas ainda ocupavam lugar de proeminência e honra na igreja, e surgiu, a partir daí a necessidade de se diferenciar os verdadeiros dos falsos profetas. Os testes para identificá-los são bem práticos.

Permita que os profetas distribuam a (eucaristia) ações de graças como queiram fazê-lo”. [2]

E continua a recomendação:

No que diz respeito aos apóstolos e profetas, vocês devem agir da seguinte maneira, conforme estabelecido nas ordenanças dos evangelhos. Que cada apóstolo que visitar vocês sejam recebidos como o próprio Senhor; mas não devem permanecer mais que um dia ou, por (necessidade), se ele permanecer três dias será considerado falso. E ao partir, o apóstolo não deve receber nada além de comida até que encontre um abrigo, e, se ele pedir dinheiro, considerem-no um falso profeta”. [3]

Parece um teste bem simples, mas o assunto é mais complicado do que se imagina.

Mas, vocês não devem testar ou julgar qualquer profeta que fala no Espírito, porque todos os pecados são perdoados, menos este. Contudo, nem todo o que fala no Espírito é um profeta, a menos que ande nos caminhos do Senhor. É pelo estilo de vida que os verdadeiros serão diferenciados dos falsos. E nenhum profeta que no Espírito ordene que seja posta a mesa do Senhor dela deve comer. Todo profeta comprovado e verdadeiro, que age pelo mistério terreno da Igreja, mas que não ensina a fazer como ele faz não deverá ser julgado por você; ele será julgado por Deus. Assim fizeram também os antigos profetas. Se alguém disser sob inspiração: “Dê-me dinheiro” ou qualquer outra coisa, não o escutem. Porém, se ele pedir para dar a outros necessitados, então ninguém o julgue[4]

O tema parece um tanto confuso, mas a ideia em vista está bastante clara. Uma pessoa que negocia seus dons de profecia não pode ser recebida. No entanto, deve-se ter muito cuidado ao testar os que vêm como profetas, porque duvidar de um verdadeiro profeta é pecar contra o Espírito Santo através do qual ele fala. E se um profeta verdadeiro decide fixar-se numa comunidade cristã, esta deve ser congratulada. Um irmão que viaja deve estar preparado para obter seu sustento através de sua profissão enquanto está residindo na cidade da igreja que ele freqüenta. Porém, um profeta merece honra por seu posto e pela virtude de seu ministério profético.

Acolha todo aquele que vier em nome do Senhor. Depois, examine para conhecê-lo, pois você tem discernimento para distinguir a esquerda da direita. Se o hóspede estiver de passagem, dê-lhe ajuda no que puder. Entretanto, ele não deve permanecer com você mais que dois ou três dias, se necessário. Se quiser se estabelecer e tiver uma profissão, então que trabalhe para se sustentar. Porém, se ele não tiver profissão, proceda de acordo com a prudência, para que um cristão não viva ociosamente em seu meio. Se ele não aceitar isso, trata-se de um comerciante de Cristo. Tenha cuidado com essa gente![5]

“Todo verdadeiro profeta que quiser se fixar em seu meio é digno de alimento. Assim também o verdadeiro mestre é digno do seu alimento, como qualquer operário. Portanto, tome os primeiros frutos de todos os produtos da vinha e da eira, dos bois e das ovelhas, e os dê aos profetas, pois são eles os seus sumos-sacerdotes. Porém, se você não tiver profetas, dê aos pobres. Se você fizer pão, tome os primeiros e os dê conforme o preceito. Da mesma maneira, ao abrir um recipiente de vinho ou óleo, tome a primeira parte e a dê aos profetas. Tome uma parte de seu dinheiro, da sua roupa e de todas as suas posses, conforme lhe parecer oportuno, e os dê de acordo com o preceito. [6]

Aqui o profeta deve ser tratado mais ou menos como o levita do livro de Deuteronômio [7] e a comunidade que persuadir um profeta a se estabelecer em seu meio deve se sentir como Mica no livro de Juízes, que disse: “Sei, agora, que o SENHOR me fará bem, porquanto tenho um levita por sacerdote” (Jz 17.13).

E uma igreja não podia ficar esperando que a palavra de um profeta residente se cumprisse; tal pessoa deveria ter um ministério normal, profético ou não.

Escolha bispos e diáconos (ou superintendentes e ministros) dignos do Senhor. Eles devem ser homens mansos, desprendidos do dinheiro, verazes e provados, pois também exercem para vocês o ministério dos profetas e dos mestres. Não os despreze porque eles têm a mesma dignidade que os profetas e os mestres.[8]

O Didaque, na verdade tenta manter o equilíbrio entre a autoridade dos líderes da igreja local (bispos e diáconos) e a autoridade exercida por profetas que não estavam ligados a nenhuma igreja local, e sobre quem não era fácil manter um efetivo controle. Em qualquer igreja local sempre haveria pessoas que achavam os profetas visitantes inspiradores, em contraste com os anciãos sérios, a quem deviam ouvir todos os dias. E se as injunções dos profetas viessem de encontro com os líderes locais, a autoridade e prestígio dos anciãos poderiam ser minadas. Era fácil, para os profetas que não tinham responsabilidade local dizer às pessoas o curso que deveriam seguir, mas os líderes locais tinham a responsabilidade de guiar os assuntos do rebanho e assumir as conseqüências de quaisquer erros que cometessem. Por isso foi necessário escrever algumas regras para controlar a atividade profética, sem que incorressem no risco de “extinguir o Espírito”, cf. 1 Tessalonicenses 5.19.

Existe, de fato, uma inevitável tensão entre as formas ordenadas de um ministério regular e aqueles ministérios cuja forma é imprevista e entusiástica. É normal que pessoas que apreciam uma forma não conseguem entender a outra. Quando um membro do Exército da Salvação – assim contam a história – freqüentava um culto numa igreja Anglicana e ouvia um sermão evangélico que ele gostava, se expressava alegremente com “Glória a Deus! Aleluia”, e logo em seguida um irmão da igreja batia em seu ombro e lhe admoestava, “desculpe-me, Senhor, mas não fazemos isto em nossa igreja”. Mais diretamente agiu o Bispo Butler ao repreender João Wesley quando este visitou a Diocese de Bristol: “Querer imitar as revelações extraordinárias do Espírito Santo é uma coisa horrível, horrível coisa”. Os líderes locais são responsáveis para que haja um fluir da vida da igreja “com decência e ordem”, e, portanto não gostarão de serem perturbados por “apóstolos” invasores, especialmente os tipos meteoros que hoje estão aqui e amanhã se vão. O profeta visitante, por outro lado critica as regras estabelecidas pelo bispo como se este estivesse apagando o Espírito. Cada lado tem seus simpatizantes, e a tensão pode gerar divisão, a menos que a graça de Deus invada a todos.

Talvez seja isto o que acontecera na igreja de Corinto lá pelo ano 95 quando surgiram problemas e os presbíteros/bispos foram depostos e a igreja romana escreveu pela pena de Clemente reclamando do comportamento inconstitucional dos corintos.

A insistência de Inácio trouxe para a igreja a supremacia de um único bispo, praticamente eliminando o ministério do dom profético. A Didaque dava total liberdade a que um profeta celebrasse a eucaristia, mas Inácio insistia que esta só era válida quando celebrada por um bispo ou seu auxiliar. É até possível que Inácio, homem de firmeza de caráter e que possuía em seu ministério um forte sentido profético se preocupasse, acima de tudo com a ortodoxia. Quando se concede ao profeta a liberdade de falar de improviso, não existe garantia de que ele não traga alguma heresia. Um bispo, por outro lado, é o guardião da ortodoxia. A garantia de se conceder liberdade total poderia trazer algum risco. Era comum Inácio “gritar no Espírito”, quando visitou a igreja de Filadélfia, afirmando: “Nada façam sem seu bispo!” [9] Mas, outras declarações dele nem sempre eram bem polidas.

Algo semelhante ao gênio profético aparece ao mesmo tempo no Pastor, de Hermas, e talvez esteja aí a popularidade dessa obra em contraste com outros campeões da fé daquele tempo. Hermas, à semelhança do Didaque estabelece alguns testes para os profetas, e o fato dele fazê-lo sugere que em seus dias, nas primeiras décadas do segundo século a enunciação profética não havia de todo desaparecido da igreja de Roma. O teste estabelecido por Hermas é bem evangélico, pois afirmava que um homem inspirado pelo Espírito de Deus dará provas de que é de Deus pelo estilo de vida e caráter. Uma pessoa ambiciosa, que se auto-proclama, tagarela ou mercenária mostra que o espírito procede de diferentes fontes.

Quando um homem que tem o Espírito divino entra numa sinagoga de homens justos, que têm fé no Espírito divino, e são homens intercessores, então, o anjo do Espírito profético, que está em contato com ele, enche tal homem e este, cheio do Espírito de Deus, fala à congregação conforme Deus quer”. [10] 

Mas, estas manifestações proféticas depois da era apostólica deram espaço para que surgisse o movimento montanista que se espalhou da cidade de Frigia para todo o mundo cristão.

A Ásia Menor fora marcada por entusiásticas formas de religião, especialmente o culto a Cibele, a Grande Mãe dos Deuses. Talvez, em parte por causa disto foi que uma variedade nova de atividades cristãs aparecesse no ano 156 nos altiplanos da Frigia que contaminou o elemento profético. O líder do novo movimento, Montano, de onde procede o nome do montanismo ensinava que, como a dispensação do Pai dera lugar à manifestação do filho quando Cristo veio a terra, também agora a dispensação do Filho dera lugar à dispensação do Espírito. Pois a promessa de Cristo de que enviaria o Paracleto se cumprira, e ele, Montano era o porta-voz do Paracleto. A vinda do Paracleto era o prelúdio do segundo advento de Cristo e o estabelecimento da Nova Jerusalém numa das cidades da Frigia.

Se citarmos a descrição que Hort faz do montanismo, veremos manifestações que sempre ocorrem na história do cristianismo, quando o novo vinho de um movimento espiritual se torna muito poderoso para ser contido nos velhos odres, agora rígidos demais pele excesso da organização.

Rapidamente, as características desse movimento foram: Primeiro, uma fé firme no Espírito Santo como o Paracleto prometido, apresentado como poder do céu para a igreja nos dias de hoje. Segundo. A crença de que o Espírito Santo se manifestou de maneira sobrenatural naqueles dias através de profetas e profetizas. Terceiro, a preocupação em inculcar o modelo cristão de moralidade, disciplina e o fortalecimento do ensinamento desses profetas. Um aumento no número de igrejas contribuiu também para um aumento de regras e exigências e um rigoroso sistema de proibições. A essas três características do montanismo podem-se acrescentar outras duas: Quarto, a tendência de jogar os profetas contra os bispos. A nova organização episcopal que incluía todos os cristãos numa só comunhão e que os montanistas viam nisso um grave perigo, e quinto, um anelo da segunda volta de Cristo com a conseqüente indiferença aos assuntos terreais.[11]

A função de mulheres no ministério profético, apesar dos precedentes no Antigo e Novo Testamentos sempre trouxeram muitos problemas ao governo da igreja. Elas são mais difíceis de serem controladas do que os profetas homens. Duas mulheres, Priscila e Maximiliana que abandonaram os laços familiares para seguir a Montano e que agiam como profetizas de um novo tempo, eram acusadas pelos bispos locais de estarem possessas por demônios, mas, os bispos nunca conseguiram expulsar os demônios delas.

Entre as novas revelações que elas apresentavam havia sérias medidas restritivas e proibições aos seus seguidores, em assuntos como, jejuns e casamento. Parece que no começo houve uma tentativa de renunciar totalmente ao casamento, mas, mais tarde o que distinguiu os montanistas foi o ensinamento de que não deveriam entrar num segundo casamento, não apenas para os ministros da igreja, mas para todos os membros da coletividade profética. Um dos destaques do montanismo era o rigor e o entusiasmo de buscar o martírio.

Muitos aspectos do movimento atraiam todo tipo de pessoas. Os confessores na perseguição de Viena e Lyon no ano 177 escreveram admoestando os irmãos na Ásia menor e o bispo de Roma para que não apagassem o Espírito ao agir tão rigorosamente contra os montanistas. No final do segundo século o movimento alcançou as províncias do norte da África e lá houve a conversão do ilustre Tertuliano o teólogo jurista de Cartago. Um mestre dominicano certa vez conversou com este escritor e afirmou que era incompreensível como uma pessoa tão ilustre e inteligente desse espaço ao montanismo.

Este é um ponto de vista, mas, pode-se dizer que deveria haver algo sólido no montanismo do que se supõe, já que conseguia atrair pessoas cultas como Tertuliano. Sem dúvida, ao se espalhar por outras nações, perdeu algumas daquelas extravagâncias que eram as características do movimento na Frigia. Talvez o puritanismo tenha atraído Tertuliano. De fato, ele demonstra sinais da influência do montanismo em seus escritos durante anos até que finalmente rompeu com a comunhão católica e se entregou completamente aos “homens do Espírito”, como eram chamados. O montanismo sobreviveu no seu nascedouro, na Frigia até o século sexto quando foi esmagado pelo imperador Justino (527-565).

Um dos subprodutos do movimento montanista levou as pessoas a suspeitarem da literatura de João, no Novo Testamento, a qual os montanistas constantemente se referiam. A doutrina da Segunda Vinda era baseada numa interpretação literal do milênio apresentado no livro de Apocalipse (Ap 20.1-7), e havia aqueles que não conseguiam rejeitar a doutrina dos montanistas sem rejeitar também o livro de Apocalipse. Um dos que rejeitavam o livro de Apocalipse era um presbítero, chamado Gaio, autor de Diálogo no qual fazia um debate com Proclus líder dos montanistas naqueles dias (cerca de 200 d.C). Parece que Gaio atribuía a autoria do livro de Apocalipse a Cerinto, um herético que surgiu no final do primeiro século. Mas, ao que parece Gaio também rejeitava a autoridade do quarto evangelho, o livro de onde os montanistas tiravam a doutrina do Paracleto.

Esta informação procede de dois escritores siríacos de onde coletamos a informação que Hipólito defendia a autoria de João tanto do quarto evangelho como do livro de Apocalipse em seu tratado Defesa contra Gaio.

[1] Este dom profético era semelhante, mas não igual ao dom de línguas. Ele sobreviveu nas igrejas da Síria até o final do primeiro século, quando o tratado conhecido como Didaque mostram as tentativas de barrar e controlar os profetas. Foi restaurado no segundo século na Ásia Menor entre os Montanistas e manifestações semelhantes são vistas em vários períodos da história da igreja.

[2] Didaque 10.7

[3] Didaque 11.3-6: Os termos apóstolos e profetas aparecem intercambiados.

[4] Didaque 11. 7-12.

[5] Didaque 12.1-5

[6] Didaque 13.1-7

[7] Dt 18.6 e ss. 26.12 e ss. Outro ponto de concordância entre esta passagem da Didaque e Deuteronômio reside na orientação de se testar o profeta. Em Dt um homem é um falso profeta quando (a) suas predições não se cumprem (18.22); (b) se ele seduz as pessoas a lhe seguirem e não ao verdadeiro Deus, mesmo que suas predições tenham se cumprido (13.1 e ss.).

[8] Didaque 15.1-2

[9] Inácio, Epístola aos de Filadélfia 7.2

[10] Hermas, Pastor, Mandate XI, 9

[11] F. J. A. Hort, The Ante-Nicene Fathers (1895), pp 100 e ss.

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